quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Prato feito

Deu a hora
Fui à rua
O preço estava bom
Fiz meu prato
Sentei
Iniciei a refeição

Algumas mesas à frente
Também almoçando
Um gato, um lindo, um gostoso
Alvoroço
Fome ou tesão?

E me encarava
Mastigava
Engolia
Eu gelava
Disfarçava
Mas queria

Sabe, eu não tenho tato
Enfiava a cara no prato
Escondendo o ato que desejava de fato

Um gole de suco
O guardanapo
Sobremesa, senhora?
Não, obrigada

Levanto
Lavo as mãos
Pago a conta
Ele não me segue

É preciso andar pra fazer a digestão

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Inspiração

Não consigo fazer poemas
sem olhar o teu sorriso
Quem diria que tudo o que preciso
é essa extensão de dentes
maxilar siso
canino molar
e a língua, claro, pra molhar os lábios
os que dizem as palavras que eu quero ouvir.

Que diziam.
Não! Sua voz não está calada.
Está distante. E se algo diz
é para outro ouvido
que talvez julgas ser mais
interessante.

E agora minhas folhas seguem em branco.
Às vezes molham se caem lágrimas.
Às vezes secam o meu rosto.
Às vezes lixo.

E me pergunto:
esse que agora te dá outra atenção,
outro beijo, outro abraço,
outro gozo, outro prato...
dá ele também poema?

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Incansável fazedor de coisas

O sol nasce e o que desperta a dor
é o rádio relógio.
E sinto ódio do sol que cega o sonho.

O relógio e o calendário
tão ocupados, tão preenchidos
fazem dos meus dias e horas
máquina e produção.
Esquecem que nem tudo trabalha no ponteiro ou na folhinha.
Dor não tem feriado, lágrima não tem hora de almoço.
Felicidade não faz hora extra.

A engrenagem na engrenagem faz movimento e energia.
Mas qual maquinaria fará descanso e resiliência?
Bato o ponto.
E qual é o ponto?
Tudo cinza, metal, tudo frio.
O vazio é contrário de cheio,
é contrário de contrário de solidão.

O sol se põe e o que encerra o dia
cerra o expediente.
Será que a gente um dia vira dono de si?
Ou será ser servo do próprio desejo o nosso destino?
Desatino ao fim da produção. Trabalho feito.
E se encontram defeito no produto?
Devolução.

E se encontram defeito no fazedor do produto?

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Aula extra

Me ensina a não sentir falta
a desfazer o tear
Me ensina a esquecer a valsa
me ensina a regurgitar

Me ensina a perder a memória
a apagar o cartão
Me ensina a mudar a história
escrita no coração

Me ensina a dizer nunca mais
a queimar calendários
Me ensina não olhar para trás
Me ensina a pular aniversários

Me ensina como se ama
uma pessoa qualquer
Me ensina a buscar outra cama
e nela deitar com outra mulher

Me ensina a subtração
conter minhas lágrimas
Me ensina a sair do chão
me ensina a buscar vida cálida

Me ensina o caminho do adeus
o lugar que se some
me ensina a pedir a deus
como é que eu esqueço teu nome

Me ensina a desaprender
tudo o que a gente viveu
Me ensina a deixar de ser dois
o que é ser depois
o que é ser só eu.

domingo, 23 de novembro de 2014

Injusto sono dos justos

Sonhei com você
Senti teu sabor num sonho
Senti teu abraço, teu corpo, teu calor
Senti saudades

Porque só te tenho quando fecho os olhos?

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Não quero saber de ti

Ouço teu nome.
Viro as costas.
Saber de ti é me lanhar.

Você partiu.
Lavei teus resquícios.
E quando falam de ti - não há jeito -
teu nome me cobre de chagas.

Ouço teu nome.
Faço as apostas.
Saber de ti vai me sarar?

Você partiu.
Não vi os indícios.
E se falam de ti - não há jeito -
revelam-se em mim os estragos.

Ouço teu nome.
Cicatrizes expostas.
Saber de ti só faz me cegar.

Você partiu.
Viu no fim um início.
E pra falarem de ti - não há jeito -
é preciso falar das adagas.

Ouço teu nome.
E teu nome é uma reposta.
Saber de ti é também caminhar.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

A luz da lua púrpura

Por trás do alto do morro
Por cima da copa das árvores
Avisto a luz da lua púrpura
Ela nos banha de noite
Ela nos livra de culpa
Ilumina a rota dos rotos
E faz breu nos medos dos outros

A praça vazia e serena
coberta de estrela e sereno
fez de um momento pequeno
uma lembrança em beleza plena

Por trás do alto dos fios
Por cima da pele e do pelo
Avisto a luz da lua púrpura
Ela, delicada te banha
Ela me afoga em desejo
Ilumina o rito dos retos
E faz mito dos ditos secretos

A praça em nu silêncio
desperta sem qualquer decência
fez de um momento suspenso
uma flor que enraíza em urgência

Por trás do alto do lábio
Por cima da língua e do beijo
Avisto a luz da lua púrpura
Ela, molhada te suga
Ela, segura me lanha
Ilumina o agora fértil solo
E caem frutos no antes seco colo

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Alors brûle

Me queimei há muito tempo
no fogo que em lava lava a tua cama.
As marcas feitas na pele, frutos da chama,
se bem me lembro,
foram trama:
teu frio plano.


terça-feira, 4 de novembro de 2014

Te conto depois das seis

É uma bomba muito grande pras três da tarde?
Só fora do sol que arde é possível contemplar tal questão?
Ora, se a lua lá fora é garantia da tua calma,
sossega a alma que a noite fará de mim
guardião.


domingo, 2 de novembro de 2014

Prestando atenção

Sabe o que eu reparei?
Ontem, quando eu cheguei
e abri a porta e subi as escadas
e você não estava no quarto,
sabe o que eu encontrei?
Ontem quando eu tomei banho
e troquei de roupa e me vesti novamente,
sabe o que eu percebi?
A tua falta. Lá estava a falta
de quem não estava lá.
E lá fiquei, parado
e tentando entender qual a diferença
de ontem para os dias anteriores.
Meus olhos não estavam molhados.
Minhas mãos não tremiam.
Meu corpo não sentia saudade do teu.

Aí hoje eu acordei,
tomei banho, me vesti,
saí de casa, trabalhei,
fiz todas as coisas da rua
e voltei.
Sabe o que eu reparei?
Cada dia é um dia.
Hoje ele é só agonia
por toda essa distância.
A ânsia não é mais por tua volta
é por minha definitiva partida.


quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Quimera

Quisera eu ter um coração de pedra
Quem dera dentro do meu peito
um músculo impenetrável
Pudera palpitar apenas
para circular o sangue
Já era,
tua lembrança é líquida
tanto bate ate que fura

O que o tempo não incinera
A saudade vocifera

Quisera eu ter um coração de água
Quem dera ele escorrer do meu peito
um músculo inatingível
Pudera bombear apenas
para circular o sangue
Já era,
tua lembrança é sal
tempera minha tortura

O que o tempo não incinera
A saudade vocifera

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Poesia de sétimo dia

De luto estão meus versos
Não vestem outra cor que não o preto
É o mínimo de respeito que minha poesia tem
Não sei rimar belezas e sorrisos
Quando o juízo final caiu sobre nós


quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Fantasma

Cá estou te sentindo perto
Sentimento fantasma
Teu corpo não está ao meu lado
Tua mente, em outro espaço
Teu coração não está em min

Como é possível, então,
Que eu sinta esse calor?

Calor que não esquenta,
Que não conforta

Se você não volta
Porque não me devolve a paz?
Não encontro o meu sorriso
Você levou junto aos souvenirs

Que adeus difícil de dar.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Constatação

Olho para o espaço inabitado em minha cama.
Escuto as palavras engasgadas.
Sob o lençol está inerte a minha ânima.
Eu saio pela rua, trabalho, conheço pessoas.
Nenhuma delas é você.

Atravesso a rua e o sinal estava aberto para mim.
Chego do outro lado e não sei para onde vou.
Chego no destino e nem vi como fui.
Mas fui. Sozinho.

A noite é fria. A noite é quente.
A noite é noite. Independe da gente.
E a manhã virá? Virá. Mas virá sem você.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Doce esbarrão

Virei a esquina e lá estava você
Sorrindo pra lua e carregando o teu instrumento
Que doce noite

Ele nas tuas costas
Eu à tua frente
Não havia som, mas havia música

E eu a via ali
E ouvia o som que você tira das cordas
Como você me toca quando toca o teu instrumento

Boa noite
A gente se esbarra logo, eu espero
Há tanta esquina nessa cidade

Que felicidade será te ver sorrindo pra lua
Ou, sob a lua, te ver sorrindo pra mim

Que doce música eu ouviria nesta noite

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Você de azul

Oi
Sonhei com você
Você estava de azul
Foi aí que vi que era sonho
Você quase não usa azul
Eu andava na praia
E eu quase não vou à praia -
sonho, só podia ser -
E andava na areia,
pisava na espuma
E você vinha lá no horizonte
que sonho bonito
Estava sol
Um calor aconchegante
Aquele quentinho de colo e edredom
E você vinha, de azul
Os cabelos voavam
Seus cabelos
presos daquele jeito que eu acho lindo
E você vinha, de azul
E eu andava na areia
pisando em lembranças
digo, em espumas
E você vinha
seus cabelos voavam
Estava um dia tão lindo
Mas era sonho
Você chegou bem perto
Me deu um beijo
Nos deitamos na areia -
areia
essa coleção de destroços -
eu pisava em lembranças
Não, nós estávamos deitados
na areia
E você me beijava
E eu te beijava
E nós sorríamos
Felizes
Juntos
Foi aí que eu vi que era sonho
Você quase não usa azul

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Dúvida matinal

Onde é que eu estou com a cabeça?
Onde é que eu estou com o coração?
E nesse lugar; que lá permaneça
ou de lá se transformarão?

domingo, 14 de setembro de 2014

Sentimento Amputado

Bisturi cego.
Sem ponto. Sem anestesia.
Me amputaram um sentimento.
Doutor, qual o tratamento?
Existe prótese para o coxo coração?
O que eu faço, moço?
Tem muleta pra eu seguir o caminho?

Atadura frouxa.
Tala inútil.
Não desfaz a fissura.
Não refaz a conexão.
O que se faz se jaz inerte o músculo cardíaco?
Não bate. Não pulsa. Não jorra. Não bombeia.
Implode.

Bisturi cego. Médico mudo.
Não tem palavras, doutor?

Cego também o paciente.
Impossível ler a receita.
Se nada reendireita,
sigo coxo.
Coração frouxo, cego.
Calado. Inútil.

sábado, 13 de setembro de 2014

Sem saída

Fim da estrada.
Fim da canção.
O amor encontrou o final do arco-íris.
Não há pote de ouro.
Há mar revolto em busca de calmaria.

Fim da estrada.
Qual a rota a seguir?
Se acaba o asfalto eu me arrasto
pelo mato?
Não tem terra, não tem via.
Há um rio que corre entre pedras.

Fim da estrada.
E não há sinal de retorno.
Túneis? Pontes?
Por onde se inicia a nova travessia?
Sem mapa, sem estrelas, sem direções.
Se até poesia tem fim
como o amor não acabaria?

domingo, 7 de setembro de 2014

Propícia estação

Escondi do sol.
Cortei o adubo.
Parei de regar.
O amor floresce sem alimento.

Salguei a terra.
Queimei a raiz.
Envenenei as suas folhas.
O amor floresce sem razão.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

domingo, 24 de agosto de 2014

24 / 21

Hoje é dia vinte e quatro. Veja você.
Dia que foi de beijo, que foi desejo,
que foi festa.
Dia de comemorar o dia que começamos.
Todo mês, sem dor ou talvez,
naturalmente era o nosso dia certeiro
o dia vinte e quatro.

Aí, sem talvez nenhum,
tudo acabou num dia vinte e um.

Hoje, o dia vinte e quatro é só um dia vinte e quatro.
Mas o que dizer dos novos dias vinte e um...

sábado, 23 de agosto de 2014

It ended in the end of July

It ended in the end of July.
I cried and asked "why?".
Then August came
and this old flame
was still burning (in) my heart.
Now the winds bring September.
Will it dismember me
or allow a whole new start?

Untill the next year
when July'll be over again
I'm not able to know
what is past, what is remain,
what is gone and what lasts.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

A dor não é líquida

Incolor, insípida, inodora.
Nem a água é indolor.
Tanto bate até que fura.

domingo, 17 de agosto de 2014

Canção do não-adeus

Estranho ser ninguém na sua vida.
Já não sou nem pedra no caminho.
Minha boca não é mais a preferida.
Eu perdi o gosto do seu carinho.

Onde foi parar tanta promessa?
Onde estarão as palavras de futuro?
Quando começou a tua pressa
de me largar sozinho no escuro?

Sem você tudo é frio, é tão gelado.
Sem você o nada é nova companhia.
Se lá fora o céu era cinza, era nublado,
no quarto o sol queimava toda ira.

Estranho ver alguém na sua vida.
Já há nova rota, eu sou velho caminho.
Nova boca é a tua preferida.
Novo lábio saboreia o teu carinho.

Onde foi parar tanta promessa?
Onde estão as lembranças do passado?
Quando começou a tua pressa
de buscar um novo ar, um outro amado?

Sem você continuo sob a neve.
Não busquei uma nova companhia.
Se lá fora o dia é quente, se o dia é leve,
no quarto pesa a ausência, pesa a apatia.

Estranho dar adeus à nossa vida.
Trilhar sem você o meu caminho.
Descobrir, virá nova preferida?,
E se há vida após nosso destino.

Tudo o que é nosso

Tudo o que é nosso
             sem nós
                   fica só.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Three Little Words

Lembre das três palavras -
sempre fogo, sempre lava.
Lembre de cada palavra,
quem sabe forja, quem sabe crava.
Lembre, se é que há palavra.

domingo, 10 de agosto de 2014

Lua e longe

Disseram:
Olhe pro céu! Veja a lua! Como está bela hoje.
Eu não posso olhar pro céu. Não posso olhar pro lado.
Quero te ver, estar contigo. Não com a lua.
De que adianta a beleza e o brilho que está fora da terra?
Eu quero a beleza e o brilho daquela que me faz sol.

Tanto disseram:
Olhe pro céu! Veja a lua! Como está bela hoje.
Que eu olhei. Vi. E pensei:
Nossa!, como está bela essa lua.
Agora eu me pergunto:
Você virou lua? Por isso distante? Por isso tão linda?

Disseram:
Que pena. Logo amanhece e adeus essa lua.
Nossa!, que medo que chegue a manhã.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Teus lábios

Hoje teus lábios não tocaram os meus.
Eles falaram de ostras, de coisas,
dos outros.
Não falaram de nós.

Hoje teus lábios sorriram,
se molharam na saliva, no veneno,
no chocolate.
Não tocaram os meus.

Hoje teus lábios brilharam,
mudaram de cor, foram mordidos.
Não disseram meu nome.

Hoje teus lábios me saudaram de longe.
Hoje teus lábios me disseram adeus.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Bom dia, amor

Acorda, amor.
Já passou o pesadelo.
Era uma nuvem. Era uma névoa.
Foi só um susto.

Acorda, amor.
Eu já fiz o teu café.
Tem chá também.
Tem eu também.

Acorda, amor.
Não fica aí parada.
A cozinha está longe da cama.
Vem pra perto.

Acorda, amor.
Cuidado que o café esfria.
Que o pão esfria.
Que o amor esfria.

Acorda, amor.
Daqui a pouco acaba o dia.
Daqui a pouco anoitece.
E não vai mais fazer sentido.

Acorda, amor.
Você não gosta de pão dormido.
Acorda que me dói ser esquecido.
Acorda pro sonho ser revivido.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Diz o luto

Bateu o portão. Saiu. Deixou.
Sumiu na esquina. Partiu. Acabou.
Horas e mágoas e livros.
Anos e lingeries.
Dissolvidos.

Rompeu a veia. Rasgou. Jorrou.
Caiu por terra. Quebrou. Findou.
Cacos e pontos e dor.
Lacunas e pó.
Dilacerados.

Cortou os olhos. Sangrou. Cegou.
Abriu os pulsos. Escorreu. Esvaziou.
Caminhos e rios e pedras.
Flores e só.
Dissolutos.

sábado, 5 de julho de 2014

O Livro da Pele

A palavra constante
que tatua a pele nua
não é marcada com lápis,
não é marcada com giz.
A palavra constante
que tatua a pele nua
é marcada com língua e unha
com suor, com lágrima, com saliva.

A lástima da qual ninguém se esquiva
é que nada apaga a palavra constante.
Uma vez sobreposta, jamais eliminada.

A página na qual tudo se publica
é a que revela a palavra constante.
Uma vez lida, jamais silenciada.

A palavra constante, marcada, sangrada,
vestiu a pele nua de significados e significantes.
Cobriu a epiderme de vogais, de consoantes,
 de pontos,
de vírgulas, de indagações.
A leitura da pela, outrora nua,
é obrigatória. É escolar. É secular.

domingo, 8 de junho de 2014

Nada o que lhe é de direito

Ele vai levando tudo.
Nada sobra sobre a mesa.
Ele cobra cada cobre, cada vintém.
Ele suga e parece que ninguém o deterá.

Ele arrasta as memórias,
as histórias, as vitórias.
As derrotas ele também carrega.
Ele me arranca as doenças,
as moendas, as amêndoas.
Cada noz. Tudo o quê foi nós.

As pétalas, os rótulos, os nódulos, as cédulas.
Apaga as velas, e as leva.
As telas, as aquarelas, as janelas.
Fica tudo escancarado de cara para o vazio.
Ele leva os cabos, os tetos, os fios.
Leva o chão, leva o ar.

Pronto. Ponto.
Tudo foi levado. Liquidado. Exterminado.
Mas eu fico. Eu finco.
Eu findo. Eu renasço.
Eu permaneço.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Logo, logo

Vem logo,
me carrega no colo.
Me retira do solo,
me levanta, me joga pro alto.

Vem, chega mais.
Os que vieram antes
já ficaram pra trás.
Me retira do ontem,
me adianta, me arranca do chão.

Vem, fica um pouco.
Segura meu corpo
pra ver se ele fica de pé.
Pelo menos um louco
ajudando o outro
pra ver se dá pra manter a fé.

Vem, mas vai logo após.
O ímã do solo me afasta de nós.
Estou grudado à gravidade.
E quando chega a idade
o ideal é não resistir.

Vem, deixa ir embora o medo.
O que era pra ser o desejo
já virou a resposta.
Já acabaram as apostas,
o resultado está na mesa.
Na hora que estourar a represa
o que afunda fica, o que flutua vai
e o que nada contra a força,
o que luta contra a corrente
é esse que vem.
Logo, logo.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Semente da discórdia

Como se grita socorro na terra dos surdos?
Como se faz milagre onde não se tem fé?
Quem acude o faminto onde não se tem pão?
Quem abraça o outro quando não sabe quem se é?

É a terra dos perdidos, dos dispersos,
dos abatidos.
É o mar de distâncias, de percalços,
de suicídios.
É o céu de pecados, de desgostos,
dos desvalidos.
É o fogo que queima, que corrói,
que faz sentido.

Como se grita socorro na terra dos surdos?
As orelhas queimadas, os olhos afogados,
a língua corroída, o abraço desconhecido.

É a árvore dos solitários. O fruto cai.
A folha seca. A flor não cheira.
A raiz, só, aprofunda. Aprofunda.
Afunda.


O doutor que me deixou perplexa

Atravessei a rua perplexa.
Era ele. Eu vi.
Passou do meu lado. Não me viu.
Era ele.

Há duas semanas eu tive um troço,
um negócio esquisito, fiquei abatida...
Fui pro pronto socorro - pensei,
com sorte eu morro e acaba o meu sofrer.
Mais que a dor de barriga
doía a dor de estar viva e não ter porquê viver.

Pois bem, lá estava eu, deitada na maca,
em meio a "ais", "uis" e "me salva jesus",
quando ele apareceu. Sim, o moço faixa de pedestres,
uma visão, um oásis, um desses que a gente vê e fica...
perplexa.

Na sorte (ou azar) ele veio me atender.
E que sorte (ou azar) eu estou solteira.
Ai, que tola, com aquela cara de caveira...
como ia fazê-lo olhar pra mim como mais que uma mera paciente?

Paciência. Vai que acontece?
Quem dera... Fui atendida, medicada e dispensada.
Pelo médico e pelo hospital. Mas tudo bem,
ser dispensada é o meu usual.

Mas era ele. Atravessando a mesma rua que eu.
Quisera ele tivesse me visto. Quisera ele tivesse olhado.
Eu parei e admirei aquele deus seguindo seu caminho,
enquanto eu ficava ali embasbacada.

Eu sentia uma luz, um som.
Pois é, fui atropelada.
E ele voltou correndo, me socorreu, me acudiu.
Chamou a ambulância, e eu na ânsia de dizer, de falar...
ele sorriu, e disse "calma".
Foi o que bastou. Lá se foi a minha alma, desconexa do meu corpo.
Morri perplexa nos braços do doutor.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O corpo da minha mulher

O corpo da minha mulher tem caminhos.
Tem rotas, tem fugas, tem esconderijos.
O corpo da minha mulher é abrigo,
é escolta, é escudo, é uma lança.
O corpo da minha mulher é gruta,
é caverna, é escola, é prisão.
É lar.

O corpo da minha mulher tem formas.
Tem marcas, tem resquícios.
Tem linhas, tem curvas, tem cantos.
O corpo da minha mulher tem encantos,
tem encontros, tem espaços.
Tem inchaços, tem relevo.
O corpo da minha mulher tem cor,
tem manchas, tem texturas.

O corpo da minha mulher tem de tudo.
O corpo da minha mulher tem tantos,
tem muitos, tem vários.

De tudo o que tem e o que falta
o corpo da minha mulher não possui defeitos.
Entre defesas, ataques e efeitos,
o corpo da minha mulher tem o que em outros corpos nunca vi.

O corpo da minha mulher não tem poucas coisas.
Não tem donos, não tem trancas, não tem atalhos.
O corpo da minha mulher não é meu.
Eu sou nela.
O corpo da minha mulher tem eu.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Esperando acordado

Vou dormir e esperar o sonho.
Realidade é verbo.
Sonho é número.

Vou dormir e esperar fevereiro.
Acordado todo dia é quarta-feira.
Todo dia eu sou cinzas.

Vou dormir e esperar sua chegada.
Sozinho eu não vejo.
Desperto em teu beijo.

Vou dormir e esperar que acorde.
Eu falo dormindo.
Eu acordo mudo.

Vou dormir e esperar um acorde.
Eu canto dormindo.
Eu acordo e mudo.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Pois é, moço

Pois é, moço.
Você pediu segredo.
Pediu silêncio.
Escondeu os atos,
camuflou os sentidos.

Pois é, moço.
Você saiu mais cedo.
Acendeu um incenso
pra despistar dos olfatos
o perfume dos corpos despidos.

Pois é, moço.
Você não esqueceu um pijama,
não deixou impressões digitais.
Limpou os fluidos da cama,
fingiu não haver filiais.

Pois é, moço.
As máscaras caem.
A gravidade não perdoa nada,
nem mesmo a hipocrisia.
Agora que a lama subiu no pescoço,
e agora, moço, e agora?
Como escapar dos olhos de quem te guia?

Já era a hora, moço.
Eis a tua verdadeira face.
E se não consegues se ver,
como se mostrar?
Vê se esquece que tu é esboço
e concretiza a tua imagem.

Quanta bobagem, moço.
Se não és feito de carne e osso,
se revelas ser de mofo e destroços,
é quando sei que não posso
cair contigo no fundo do poço.
Pois é, moço. Adeus.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Ego e tal

A viagem. Assim, muito bem pensada. Eu sabia o que fazer, como jogar (a gente sempre tem que saber). Mas algo me fez esconder a minha feiura. A viagem. Assim, praticada. Com suas máquinas e pensamentos. Fruto podre da sacanagem, mas sobretudo das destrezas... Sim, tenho algumas destrezas, mas "essa" eu sabia que valeria. A viagem. Viagem de escrúpulos (esses ainda não retornaram). Um dos maiores presentes da vida. Da minha vida (eu eu eu). Talvez não soubessem disso tudo mas não tinha dimensão da força da canalhice explícita. Não me admirei nem me surpreendi - apenas tenho sentido, sem esforço, que o outro nada me importa... A viagem. Uma metáfora para que me conheçam fragmentado. Uma lembrança de que escutar, ver, sentir o que sou não é prática trivial nem difícil, só revela. Basta querer. A viagem... Emblemática no modo como foi pensada. Como está sendo traída. E como será vingada.