sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Simplesmente Eu. Clarice Lispector

Simplesmente Eu. Clarice Lispector é um espetáculo imperdível. Beth Goulart interpreta (com maestria), dirige e escreve esta obra teatral que trata da vida e da obra de Clarice Lispector. Ainda emocionado com este trabalho lindo, acho melhor deixá-los com as palavras da própria Beth Goulart e em seguida uma entrevista muito interessante feita em 1977 com Clarice Lispector.

Encontro com Clarice Lispector
O que me levou a fazer Clarice Lispector no teatro foi o mistério do espelho, a identificação que sinto por ela. A vontade de trazer mais luz sobre esta mulher que revolucionou a literatura brasileira, redimensionou a linguagem falando do indizível com a delicadeza da música, usando a escrita como uma revelação, buscando o som do silêncio ou fotografar o perfume. “A arte é o vazio que a gente entendeu” diz Clarice.
Quero atingir o vazio de mim mesma para refletir a profundidade desta mulher que conhece o segredo das palavras e suas dimensões. O questionamento, é a busca constante do artista diante de sua escolha, como ela, eu gosto de intensidades.
Há dois anos mergulhei num processo de pesquisa para escrever este roteiro lendo tudo o que podia de sua obra e livros biográficos. Fiz dois workshops com Daisy Justus, psicanalista, especializada em Clarice Lispector, que analisa sua obra sob a ótica da psicanálise. Vi e ouvi tudo o que podia sobre ela, suas entrevistas, fotos, o depoimento no MIS, a entrevista póstuma na TV Cultura, enfim me tornei uma esponja de tudo o que se referia a ela.
Neste olhar apaixonado escolhi sua obra para recontá-la. Construí um corpo narrativo com trechos de entrevistas, depoimentos e correspondências que preparam os personagens que irão se apresentar ao público como desdobramentos dela mesma. Os temas abordados são reflexões sobre criação, vida e morte, Deus, cotidiano, palavra, silêncio, solidão, arte, loucura, amor, inspiração, aceitação e entendimento.
Clarice é muito pessoal em seus escritos e todos os seus personagens tem algo de si mesma. Acho que Joana de “Perto do coração selvagem” talvez seja a mais parecida com sua essência criativa e indomável. Ana do conto “Amor” é a dona de casa e mãe dedicada que Clarice certamente foi. Lori de “Uma Aprendizagem ou O livro dos prazeres” vive em cena as descobertas do amor e A Mulher do conto “Perdoando Deus” é uma bem humorada auto-critica.

Beth Goulart

NÃO PERCA!!!

Ritual sagrado

Não me sinto muito bem ...
Será que foi alguma coisa que eu comi?
Tudo está rodando ...
mas não é à minha volta;
é dentro de mim.
Uma náusea me consome
e dentro de mim o mundo gira.
O tempo não se propõe a parar.
A minha dor não é maior que o tempo.
Ela dura além do meu relógio de pulso.
A dor pulsa, assim como o meu coração.

Ah! Mas que sensação horrível!
Eu daria tudo para chegar logo em casa.
Para quê?
Ora ... para poder expelir esse mal meio sólido,
meio líquido que se instaurou em meu estômago.
Essa coisa que deveria me nutrir,
mas não: me atacou.
Fingiu ser alimento,
e quando -pobre de mim! - senti-me saciado
se voltou contra o meu corpo e quis fugir.
Nem o que consumo me sustém.

E pensas que é assim, fácil,
vomitar?
Para mim isso é um ritual.
Só em minha casa, no meu banheiro,
numa intimidade minha e do sanitário
é que abro-me por inteiro.
Escancaro o que nem meus olhos enxergam
e, numa verdade suja e porcelânica,
faço um canal entre o meu estômago e o esgoto.
Será uma viagem única para o que regurgitarei.
Adeus alimento ingrato!
Recusaste fazer parte de mim.
Dei-te meu corpo e preferiste me abandonar
e sair numa corrente mágica,
o fluxo infinito da descarga ,
que o levou para um mar de detritos e degetos.
Adeus, e tenho pena de sua inútil viagem.
Se querias a latrina,
antes me habitasse um pouco mais
e verias que meu sangue é fétido e minhas veias, puros canos enferrujados.
Meu corpo pútrido não é mais digno nem do prazer do paladar.
Não mereço mais o sabor do prazer,
o prazer do sabor.

Num ritual demorado e sacro,
coço a cabeça,
ajoelho-me diante do meu Deus de porcelana
e grito, em dor, a lástima do meu sacrifício.