terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Teus olhos, menino

Ah, menino!
Como me dói ver estes olhos,
tão belos, tão lindos,
perdidos e sem horizonte.

Ah, menino!
O que é que tua vista procura?
Uma moça? Um rumo?
Teus olhos, menino,
exumo-os das pálpebras caídas
e não há sinal da causa mortis.

Teus olhos, menino,
tão belos, tão lindos,
hão de ter no que fixar-se.
Teus olhos, menino,
perdidos,
irão um dia encontrar outros olhos onde reconhecer-se.

Serão olhos de moça;
ou os teus próprios olhos,
num reflexo da maturidade.
Mas, não perca teu olhar infantil,
tão doce como os teus olhos, menino.
Não perca.

Quero poder vê-lo novamente,
já crescido, homem feito,
e mergulhar na tua história
entre o piscar dos teus olhos, menino.
E lembrar de como era boa a nossa meninice.
Quero encontrá-lo
nos teu olhos, menino.

Clair de Lune

Sim, és tu
Lua azul
a rainha das minhas noites sem sol
Noites sem sal,
noites tão só

Tão só como tu
Lua azul
Brilha e ostenta
ó, Lua azul

Faz de mim
um raio teu,
Lua azul
Faz de mim
um rastro teu,
Lua azul

Tão teu,
eu queria ser
Assim como és do céu
Lua azul

Sim,
ilumina
A noite tão escura sem a tua presença
A noite tão escura sem a tua presença

Sim,
canta com tua voz neblina,
dança com a sua luz albina,
sim,
Lua azul,
és minha harpa, elipse
és minha farpa, eclipse,
Lua azul

Mingua, não
Cheia de si
Crescente em alusão
às novidades de mim

És sim,
Lua azul
A melodia redonda que a noite
faz e refaz a cada adormecer do sol
Sou o teu ocaso
Sou no teu crepúsculo
És a verdadeira aurora,
Lua azul

sábado, 23 de janeiro de 2010

Palavras Benditas

No silêncio da vergonha
palavras são ditas.
Pois é quando o pudor adormece
que o proibido faz a festa.

Essas palavras ditas -
às vezes sussurradas,
às vezes aos gritos -
estão mais despidas que os nossos corpos.

Essas palavras, tão nuas,
tão sujas, tão nossas.,
são palavras vindas do mais puro desejo.
Palavras tão primitivas
quanto o mais puro desejo.

Não são ofensas, ordens,
elogios ou canções.
São os símbolos da nossa vulgaridade,
tão bela quanto a fé.
São palavras ditas para expressar nem sei o quê.
É um gozo verbal.

Palavras primitivas
de um sonho a dois.
Rabiscos que a língua faz
em corpos analfabetos, também primitivos,
também vulgares,
também santos,
também ditos.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Não fales de mim

E eu que tanto te quero ...

Seriam os meus atos assim tão condenáveis?
Seriam os meus atos assim tão classificáveis?
Tens mesmo que martelar que o que faço
é isso, aquilo ou sabe lá o quê?
Tens mesmo que repetir, a cada passo meu,
que meus pés tem um peso tal e que marcam o chão
da maneira "xis"?
Pra que essa falácia infeliz?

Minhas ações, comuns e banais
como as de qualquer outro ser andante nesta vida,
minhas pobres ações,
nada de mais ao comparar com grandes feitos, bons ou maus,
porque logo as minhas ações escolheste para julgar?
Para quê expor aos sete cantos, sete ventos, sete mares,
cada única vez que cometo um dos sete pecados?
Para quê, se a ti nada interessa?

Ah, mas como me chateia ver-lhe lambendo os lábios
para discorrer sobre os meus hábitos e costumes.
Quanta bobagem num só abrir e fechar de boca.
Quanta dor me causas. Quanto antes,
não prefiro eu, palavras poucas a
palavras dúbias.

Portanto, querida,
não fales mais de mim.
Não é pedido ou ordem,
é ultimato.

Se queres minha presença, mesmo que muito pouco;
se querer meu alento, mesmo que muito seco;
se querer meu perfume, mesmo que muito parco;
se querer minhas vestes, mesmo que muito rotas,
trate de cumprir com o combinado.

Fale de mim o que nem eu saiba.
Para julgar-me, cala-te.
E se pensas em voltar ao mesmo caminho,
se a ti não carece o meu bem-querer,
não espere de mim nada mais que o desprezo.

Não fales de mim
e seremos felizes no silêncio.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Amor de Outono

Amor que nasce no Outono está fadado ao fim?
Amor que nasce amarelo poderá chegar à cor carmim?
Amor que nasce seco, quebradiço,
amor sem viço, esse.

Amor que nasce no Outono
não floresce, nem dá frutos.
É um amor que não é quente,
e nem frio.
Mas como é belo esse amor de Outono.
Fica tão bonito no porta-retrato.
Seco, morto,
eterno na lembrança
como uma folha seca,
desidratada,
guardada pelo puro egoísmo do ter.
Guardada para manter entre as mãos
o que um dia soprou vida.

Outonos de amores que
nunca chegam ao fim.
Eles vão e
voltam e
voltam
e amarelam as folhas
como fizestes em mim.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

e disse O'Brien - um excerto de "1984", de George Orwell

"- Como é que um homem afirma o seu poder sobre o outro, Winston?

Winston refletiu.

- Fazendo-o sofrer.

-Exatamente. Fazendo-o sofrer. A obediência não basta. A menos que sofra, como podes ter certeza de que ele obedece tua vontade e não a dele? O poder reside em infligir dor e humilhação. O poder está em se despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender. Começas a distinguir que tipo de mundo estamos criando? É exatamente o contrário das estúpidas utopias hedonísticas que os antigos reformadores imaginavam. Um mundo de medo, traição e tormento, um mundo de pisar e ser pisado, um mundo que se tornará cada vez mais impiedoso, à medida que se refina. O progresso em nosso mundo será o progresso no sentido de maior dor. As velhas civilizações proclamavam-se fundadas no amor ou na justiça. A nossa funda-se no ódio. Em nosso mundo não haverá outras emoções além do medo, fúria, triunfo e autodegradação. Destruiremos tudo o mais - tudo. Já estamos liquidando os hábitos de pensamento que sobreviveram de antes da Revolução. Cortamos os laços entre filho e pai, entre homem e mulher, entre mulher e homem. Ninguém mais ousa confiar na esposa, no filho ou no amigo. Mas no futuro não haverá esposas nem amigos. As crianças serão tomadas das mães ao nascer, como se tiram os ovos da galinha. O instinto sexual será extirpado. A procriação será uma formalidade anual como a renovação de um talão de racionamento. Aboliremos o orgasmo. Nossos neurologistas estão trabalhando nisso. Não haverá lealdade, exceto lealdade ao Partido. Não haverá amor, exceto amor ao Grande Irmão. Não haverá riso, exceto o riso de vitória sobre o inimigo derrotado. Não haverá nem arte, nem literatura, nem ciência. Quando formos onipotentes, não teremos mais necessidade de ciência. Não haverá mais distinção entre a beleza e a feiura. Não haverá curiosidade, nem fruição do processo da vida. Todos os prazeres concorrentes serão destruídos. Mas sempre ... não te esqueças, Winston ... sempre haverá a embriaguez do poder, constantemente crescendo e constantemente se tornando mais sutil. Sempre, a todo momento, haverá gozo da vitória, sensação de pisar um inimigo inerme. Se queres uma imagem do futuro, pensa numa bota pisando um rosto humano - para sempre."

sábado, 2 de janeiro de 2010

Mergulho em queda livre

Eu podia jurar que estava caindo.
Seria sonho?
Era uma queda livre,
tão livre que não haviam escolhas.

Era eu,
num mergulho profundo.

Não sei se era de um penhasco,
ou desfiladeiro ...
Mas, porque sonhar com isso?

Não sei se era oceano,
ou cachoeira ...
Mas, porque morrer assim?

Morrer?
Seria este um mergulho fatal?
Não.
Era apenas mais um mergulho molhado.
Voltar à superfície era apenas uma opção.
E eu não a escolhi.

Caí de cabeça,
e me perdi nesse infinito de não sei o quê.
Mergulhei e mergulhei.
Até acordar
e me ver de pé,
ao pé da cama.
Já não há quedas livres,
penhascos ou oceanos.

Meu próximo mergulho?
Num próximo sonho?
Na próxima liberdade.