segunda-feira, 7 de abril de 2014

Semente da discórdia

Como se grita socorro na terra dos surdos?
Como se faz milagre onde não se tem fé?
Quem acude o faminto onde não se tem pão?
Quem abraça o outro quando não sabe quem se é?

É a terra dos perdidos, dos dispersos,
dos abatidos.
É o mar de distâncias, de percalços,
de suicídios.
É o céu de pecados, de desgostos,
dos desvalidos.
É o fogo que queima, que corrói,
que faz sentido.

Como se grita socorro na terra dos surdos?
As orelhas queimadas, os olhos afogados,
a língua corroída, o abraço desconhecido.

É a árvore dos solitários. O fruto cai.
A folha seca. A flor não cheira.
A raiz, só, aprofunda. Aprofunda.
Afunda.


O doutor que me deixou perplexa

Atravessei a rua perplexa.
Era ele. Eu vi.
Passou do meu lado. Não me viu.
Era ele.

Há duas semanas eu tive um troço,
um negócio esquisito, fiquei abatida...
Fui pro pronto socorro - pensei,
com sorte eu morro e acaba o meu sofrer.
Mais que a dor de barriga
doía a dor de estar viva e não ter porquê viver.

Pois bem, lá estava eu, deitada na maca,
em meio a "ais", "uis" e "me salva jesus",
quando ele apareceu. Sim, o moço faixa de pedestres,
uma visão, um oásis, um desses que a gente vê e fica...
perplexa.

Na sorte (ou azar) ele veio me atender.
E que sorte (ou azar) eu estou solteira.
Ai, que tola, com aquela cara de caveira...
como ia fazê-lo olhar pra mim como mais que uma mera paciente?

Paciência. Vai que acontece?
Quem dera... Fui atendida, medicada e dispensada.
Pelo médico e pelo hospital. Mas tudo bem,
ser dispensada é o meu usual.

Mas era ele. Atravessando a mesma rua que eu.
Quisera ele tivesse me visto. Quisera ele tivesse olhado.
Eu parei e admirei aquele deus seguindo seu caminho,
enquanto eu ficava ali embasbacada.

Eu sentia uma luz, um som.
Pois é, fui atropelada.
E ele voltou correndo, me socorreu, me acudiu.
Chamou a ambulância, e eu na ânsia de dizer, de falar...
ele sorriu, e disse "calma".
Foi o que bastou. Lá se foi a minha alma, desconexa do meu corpo.
Morri perplexa nos braços do doutor.