quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Cotidiano, de Fillipe Caetano

Este belíssimo texto é de um amigo que (ainda) não tem o seu próprio blog.
Posto seu trabalho aqui como um meio de divulgação de sua arte e também como incentivo para que ele crie o seu portal.
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Cotidiano

Inicia-se mais um dia e todas as suas tradições. A tentativa de abrir os olhos, em um primeiro momento, é em vão. Levantar-me, por conseguinte, é entender as forças físicas atuando sobre o corpo. O silêncio inunda o recinto. E lá se vão os minutos.
Torna-se um grande pesar o lento passar das horas, toque após toque, falsidade após falsidade, realidade após realidade... E os minutos se vão.
Chega o momento, então, que envolve toda uma expectativa implícita dentro de mim. Fronte cansada e ao mesmo tempo amarrada, dia interminável, problemas, ligações, compromissos, metas... E, de repente, um (lindo) sorriso aparece no centro dessa multidão, roubando toda a cena.

Sorriso de um ser poético, mágico. Em sua face, traz nariz bem modelado, longos cílios, sobrancelha cheia e muito bem delimitada, pequena curva no queixo... Seus cabelos e suas unhas são concomitante e (por que não?) previamente combinadas com suas roupas de estilo. Meu estilo, devo afirmar. Seus olhos são como o céu: inexplicavelmente profundos, grandiosos (nunca grandes, embora ela esteja certa disso) e sinal claro da existência divina. Além disso, têm a força de me despedaçar, sem grande esforço.
Quando, porém, o riso se esvai, meus olhos, enfim, se fixam nos seus (pois o contrário tem alta parcela de improbabilidade). Estatizam-se. Enquanto observo um tom desconhecido de castanho claro penetrar meu olhar singelo e normal, o sorriso retorna, contido, pouco a pouco. As palavras do ambiente voam pelos ares. Passam, tocam as paredes, ressoam, encontram outras pessoas; mas a mim, em nada afeta. Ah quisera eu ouvir algo ou distrair meu olhar! Algo me algema, em cárcere privado. O melhor dos castigos. Ouço, enfim, uma palavra: a Guarda de cela quer ver como anda seu prisioneiro. "Tudo bem?", pergunta. "Claro...", respondo. Mas de um diálogo tão banal, surge o ápice do dia: seu toque. Eis que agora estou sentenciado à prisão perpétua. Impressionantemente, os minutos não se vão. E todas as minhas angústias, tristezas e tribulações dissipam-se.

Neste momento, sinto os tais sinos que outrora eram introduzidos à minha mente como sinal de um nobre sentimento. E, mesmo sem muito nexo ou analogia aparente, recordo claramente de minha avó exortando-me, quando criança: "Quem com ferro fere, com ferro será ferido...". Tomo, pois, a liberdade de parodiar o provérbio, reaproveitando-o ao meu contexto atual: "Quem com ferro fere, por Ferrol será ferido...". Direto no coração. Se bem que não firo nem a uma formiga...
Não a estou amando, embora acredite não ser isso muito difícil.
Não a desejo, pois compreendo tal palavra com certo anseio.
E nada peço, dia após dia, senão:
Vida, permita-me contemplá-la mais uma vez amanhã.

(O tempo parou.)

Quando com Isadora

Quando me devora com os olhos,
quando me adora com a pele,
quando me enclausura com as pernas,
quando se instaura no meu grito,
quando reitera que me ama,
quando me insere no infinito,
quando retira-me de mim
e me estira no fim da cama,
ah, Isadora,
essa é a hora em que a chama
arde mais um pouco
e toma todo o meu corpo
esperando a tua volta.

Agnes, sei de ti

Agnes,
teu nome esconde a tua verdade.
És a loba morena, do uivado noturno.
És mulher sapiente dos desejos do mundo.

Quando usas do teu nome,
e faz-se de cordeiro,
toma o homem de surpresa
e acerta o seu corpo em cheio.

Agnes,
joga no chão a lã que te cobre.
Mostra-te loba. Aqui está a minha carne,
devora-me.